Um dilema atualíssimo quando se discute a gravidez — saber se estamos falando sobre um ou dois corpos — é o tema central de um estudo recente, no qual duas professoras britânicas, propõem que, além de quase não serem estudados na arqueologia, o corpo grávido e o embrião-feto são raramente analisados do ponto de vista da ontologia: quando, afinal, surge uma nova personalidade?
Publicado na revista Cambridge Archaeological Journal, o estudo apresenta, de forma criativa, “um estudo de caso para demonstrar como esses conceitos podem funcionar na prática desde a Era Viking”. O ponto de partida é uma estatueta sobrevivente daquela época, que representa um corpo grávido usando um capacete marcial.
Saiba mais: DNA revela que famosa sepultura militar viking pertencia a uma mulherAlém da peça arqueológica — que pode simbolizar força ou poder — a pesquisa também se baseou em informações de várias áreas do conhecimento, como palavras e histórias antigas sobre gravidez nos textos nórdicos antigos e vestígios de sepultamento de mulheres que possivelmente morreram em decorrência do parto.
Analisando a gravidez em fontes nórdicas antigasEstatueta Aska que retrata uma suposta guerreira viking grávida. (Fonte: Marianne Hem Eriksen et al., Revista Arqueológica de Cambridge, 2025/Divulgação)Em um comunicado, a coautora Katherine Marie Olley, professora da Universidade de Nottingham, explica: “Usar textos em nórdico antigo para iluminar as crenças da Era Viking é difícil porque os manuscritos sobreviventes datam de bem depois”. Neles, alguns termos como “barriga cheia”, “descarregar” e “não caminhar mais como uma mulher sozinha” são vislumbres que simbolizavam a experiência feminina.
As sagas examinadas revelam comportamentos atípicos de mulheres grávidas, que contrastam com estereótipos de passividade. Em um desses relatos, uma mulher chamada Freydis é impedida de fugir dos seus agressores pelo seu estado de gravidez avançada. Assim, resolve enfrentá-los: desnuda o próprio peito e o golpeia com uma espada, intimidando seus inimigos.
A estatueta de prata da mulher grávida usando capacete e protetor nasal reforça essas representações de mulheres gestantes ativas e combativas. Embora não se queira criar narrativas simplificadas sobre guerreiras grávidas, Olley ressalta que os corpos grávidos daquela época não eram passivos ou pacificados,
Visão filosófica e política da gravidez através dos temposSem corpos grávidos, nenhum de nós estaria aqui. (Fonte: Getty Images/Reprodução)Na prática, no entanto, as evidências arqueológicas pouco dizem sobre a gravidez. Entre milhares de sepultamentos, há poucos casos de mães e filhos enterrados juntos, apesar da alta mortalidade obstétrica da época. Nos registros funerários vikings, os bebês são noriamente sub-representados, uma ausência que levanta questões sobre práticas funerárias diferenciadas e destinos não desconhecidos dos recém-nascidos mortos.
Para a líder da pesquisa, Marianne Hem Eriksen, professora da Universidade de Leicester, a gravidez também expunha mulheres à vulnerabilidade social. As legislações vikings não só consideravam a gestação como um “defeito” em escravas negociadas, como os filhos de povos escravizados eram propriedade dos seus senhores, explica a arqueóloga.
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Segundo o estudo, as questões colocadas não se limitam ao período Viking. O objetivo geral é centrar a gravidez no centro das preocupações filosóficas e políticas da arqueologia contemporânea. “É quase banal dizer isso, mas a gravidez é uma necessidade absoluta para todas as formas de reprodução, demográficas, sociais, econômicas e políticas. Sem corpos grávidos, nenhum de nós estaria aqui”, conclui Eriksen.
Para além da arqueologia, repense como encaramos a gravidez na história e na atualidade. Compartilhe este artigo e ajude a ampliar o debate sobre corpos, identidades e direitos invisibilizados ao longo do tempo. Nesse contexto, leia: DNA do Brasil revela exclusão genética e uma miscigenação violenta no país.